Garantia legal ou contratual do fabricante
A vigência do contrato deve abranger o tempo de garantia do produto?
29 de março de 2018
 
*Por Jacinta Macedo Birkner Guimarães


Ao finalizar seus procedimentos licitatórios ou de contratação direta, a Administração, via de regra, celebra contratos administrativos, sejam eles por termo de contrato propriamente dito, ou por meio de instrumentos equivalentes, conforme aduz o caput do art. 62 da Lei nº 8.666/93. Esta excepcionalidade repousa, essencialmente, na ausência de obrigações futuras, em aquisições que resultam em entrega imediata e total dos bens adquiridos, nos moldes do §4º do mesmo artigo, bem como no valor da contratação, independentemente da natureza do seu objeto, segundo dicção do caput. Para melhor ilustrar, veja-se o que este dispositivo determina:

Art. 62.  O instrumento de contrato é obrigatório nos casos de concorrência e de tomada de preços, bem como nas dispensas e inexigibilidades cujos preços estejam compreendidos nos limites destas duas modalidades de licitação, e facultativo nos demais em que a Administração puder substituí-lo por outros instrumentos hábeis, tais como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço.
§1º A minuta do futuro contrato integrará sempre o edital ou ato convocatório da licitação.
§2º Em "carta contrato", "nota de empenho de despesa", "autorização de compra", "ordem de execução de serviço" ou outros instrumentos hábeis aplica-se, no que couber, o disposto no art. 55 desta Lei.           
§3º Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no que couber:
I - aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado;
II - aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público.
§4º É dispensável o "termo de contrato" e facultada a substituição prevista neste artigo, a critério da Administração e independentemente de seu valor, nos casos de compra com entrega imediata e integral dos bens adquiridos, dos quais não resultem obrigações futuras, inclusive assistência técnica (grifou-se e sublinhou-se).

O destaque sublinhado acima visa justamente evidenciar a parte do §4º em que se encontra o quesito de maior dúvida entre os administradores, e tema central deste estudo: o que seriam “obrigações futuras”? A garantia do produto pode ser classificada como tal? E mais, ao celebrar o contrato, sua vigência deve abarcar o período de garantia ofertada pelo fabricante?

Antes de adentrar nos quesitos alvitrados, é fundamental tecer a diferenciação entre as modalidades de garantia: a legal, a contratual e a estendida. Para tanto, tomam-se os conceitos explanados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que bem delimitou a distinção de cada uma delas no Acórdão nº 2.406/2015 – Segunda Câmara:

23. Em regra existem três tipos de garantia, a legal, a contratual e a estendida. Nesse sentido tem-se que a garantia legal não pode ser modificada nem restringida, é de 90 dias para bens duráveis, e abrange todos os componentes do bem adquirido. Quanto à garantia contratual, entende-se que é ofertada pelo fabricante após o decurso do prazo da garantia legal, é, portanto, um benefício inerente a cada fabricante e pode ser modificado. Sendo assim, exigir que o fabricante do equipamento de informática ofereça a garantia contratual à empresa licitante é, em síntese, condicionar que somente as empresas licitantes capazes de conseguir esse benefício participem do certame, haja vista que não há padronização expressa em normativo legal voltada para os fabricantes de equipamentos de informática, estabelecendo o prazo de cinco anos como garantia contratual. Nesse sentido, tem-se que somente as licitantes que venham a obter a possibilidade de contratar a garantia estendida junto aos fabricantes podem participar do certame, estando excluídas as demais que não lograrem êxito junto aos fabricantes, sendo os mesmos ou não. Assim, o prazo mínimo de garantia a ser exigido deve ser o usual dos fabricantes, que geralmente compreende o período de doze meses a partir da data da aquisição. Portanto, a presente análise posiciona-se no sentido de que essa exigência restringe de forma irregular a competição, pois não encontra amparo legal para o objeto em tela.

Em suma: a garantia legal está expressa no Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 26; a garantia contratual é complementar à legal, facultativa, e será conferida mediante termo escrito (art. 50 do CDC); e por fim, a garantia estendida é aquela que prolonga a garantia contratual (também chamada de fábrica ou do fabricante, normalmente concedida de um ano).

Após estas considerações preambulares, volta-se às perquirições levantadas. De plano, é importante mencionar que as respostas para as indagações propostas não são encontradas em uma rápida pesquisa, uma vez que poucos doutrinadores abordam o assunto diretamente: uns apenas tangenciam o tema, outros, atêm-se às razões que possibilitam a substituição do termo de contrato por outro equivalente, ou a outras expressões com igual lacuna conceitual, como entrega imediata. Faz-se necessário, portanto, utilizar-se de uma interpretação sistemática.

Sobre o §4º do art. 62 da Lei nº 8.666/93, Marçal JUSTEN FILHO traça o seguinte panorama:

A Lei refere-se à hipótese de ausência de obrigações futuras (inclusive envolvendo assistência técnica) para o contratado. Obviamente, a regra legal não se refere à previsão de garantia pelos vícios ocultos, evicção etc. Essas decorrências são automáticas e dispensam expressa previsão contratual. Logo, a omissão do instrumento contratual não acarretaria a inaplicação das regras legais.
(...)
Admite-se, no §4º, a ausência do termo de contrato quando não dispensável a previsão mais minuciosa de cláusulas contratuais, tendo em vista a exaustão de toda e qualquer obrigação do particular em virtude da execução da prestação de dar que lhe advém da compra realizada. O motivo da dispensa relaciona-se com a inutilidade do manejo de um instrumento completo e minucioso, na medida em que a satisfação da prestação exaure as obrigações impostas ao vendedor. Logo, não cabe aplicar o dispositivo quando a tradição da coisa não acarretar a liberação do particular, sendo útil formalizar a avença em instrumento que contemple todas as obrigações futuras impostas ao vendedor (grifou-se).

Lucas Rocha FURTADO, com identidade de pensamento, é taxativo ao afirmar que a adoção do §4º não afasta a responsabilidade do fornecedor quanto a eventuais defeitos futuros no bem recebido pela Administração. Isso quer dizer que a garantia do produto, ofertada pelo fabricante, deverá ser cumprida pelo fornecedor, mesmo na ausência do termo de contrato, inclusive por força do art. 69 da Lei nº 8.666/93. Observe-se:

No caso de compra com entrega imediata e integral dos bens adquiridos, dos quais não resultem obrigações futuras, inclusive assistência técnica, o §4º desse mesmo artigo 62 dispensa o instrumento do contrato e faculta a substituição prevista neste artigo, a critério da Administração, independentemente de seu valor. A lei procura tratar essas compras de maneira bastante informal, buscando aproximar-se dos contratos celebrados no Direito privado. O termo do contrato somente poderá ser dispensado nas compras, independentemente do valor, se houver a pronta entrega dos bens, e não resultarem quaisquer obrigações futuras. É importante observar que a aplicação dessa regra não libera o vendedor do dever de responder por defeitos que o produto venha a apresentar, assim como igualmente não o libera da garantia do fabricante. Acerca da responsabilidade do fornecedor, cumpre observar o que dispõe o art. 69, in verbis:
Art. 69. O contratado é obrigado a reparar, corrigir, remover, reconstruir ou substituir, às suas expensas, no total ou em parte, o objeto do contrato em que se verificarem vícios, defeitos ou incorreções resultantes da execução ou de materiais empregados.
Nesses termos, a contratação de pequena obra (no valor de R$20.000,00, por exemplo) deverá ser formalizada por escrito, por meio de carta-contrato, nota de empenho de despesa etc., mas não será obrigatória a adoção do instrumento do contrato, que poderá ser utilizado somente se o administrador assim o desejar (grifou-se).

E com bastante nitidez, Jorge Ulisses JACOBY FERNANDES desvela o conceito de obrigações futuras, traçando o paralelo direto com a garantia do produto e atacando o cerne da questão proposta:

No termo das obrigações futuras, surge o questionamento: a garantia dos produtos pressupõem obrigações futuras? Esta é uma questão de fundamental importância. Há uma diferença conceitual entre a assistência técnica e a garantia. No âmbito da assistência técnica, deverá existir um serviço de manutenção de um produto, não havendo a necessidade de produto apresentar qualquer defeito para que o serviço seja prestado. É um serviço, inclusive, preventivo.
No caso da garantia, este é um serviço acionado toda vez que o produto apresenta um defeito, inclusive, impondo-se a sua substituição em determinados casos. Para fins do disposto no art. 62, § 4º, não há que se considerar a garantia como obrigação futura para fins de obrigatoriedade de formalização contratual. Assim, mesmo com a existência de uma previsão de garantia, é possível substituir o contrato por uma nota de empenho, por exemplo, nos casos adstritos ao disposto no artigo acima citado (grifou-se).  

Diante da exposição e da leitura conjunta da doutrina supra, não há margem para que perdurem dubiedades, e pode-se, desta feita, concluir: a garantia do produto não se trata de uma obrigação contratual futura, eis que não relacionada à execução do objeto contratado, a qual já terá sido concluída, para que se inicie a vigência do período de garantia técnica. Por esta razão, o período da garantia do produto não deve figurar na vigência de um contrato administrativo. Caso ainda remanesça alguma objeção à assertiva, o TCU e a Advocacia-Geral da União (AGU) pronunciaram-se de modo categórico quanto à matéria:

TCU
... observe, nas contratações futuras, as disposições constantes da Lei 8.666/93, artigo 57, que dispõe sobre o prazo da duração dos contratos, sem incluir no período de vigência o prazo de garantia, uma vez que esse direito, de acordo com o que preceitua o art. 69, e o § 2º, do art. 73, todos da Lei 8666/93, perdura após a execução do objeto do contrato (grifou-se).

AGU
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 51, DE 25 DE ABRIL DE 2014
A GARANTIA LEGAL OU CONTRATUAL DO OBJETO TEM PRAZO DE VIGÊNCIA PRÓPRIO E DESVINCULADO DAQUELE FIXADO NO CONTRATO, PERMITINDO EVENTUAL APLICAÇÃO DE PENALIDADES EM CASO DE DESCUMPRIMENTO DE ALGUMA DE SUAS CONDIÇÕES, MESMO DEPOIS DE EXPIRADA A VIGÊNCIA CONTRATUAL.
REFERÊNCIA: Arts. 57, 69 e 73, §2º, da Lei nº 8.666, de 1993; PARECER PGFN/CJU/COJLC/N° 1759/2010 (grifou-se).

Logo, considerando o arcabouço doutrinário e jurisprudencial aqui expendido, pode-se afirmar que o termo “obrigações futuras”, assentado no §4º do art. 62 da Lei nº 8.666/93, alberga a prestação de uma obrigação de dar ou de fazer por parte do particular contratado, que prescinde necessariamente do termo de contrato; em outras palavras, não pode ser substituído por uma de suas formas equivalentes, tendo em vista que tal compromisso futuro deve estar devidamente previsto e detalhado no instrumento contratual, sob o risco de prejuízo à Administração se assim não for procedido.

Todavia, a garantia do produto, seja ela legal ou contratual, independe de previsão no termo de contrato, em virtude de clara cominação legal, expressa no art. 69, e §2º do art. 73 da Lei nº 8.666/93. Frisa-se novamente: a responsabilidade do fornecedor não é afastada quanto a eventuais defeitos, ou vícios ocultos que venham a se revelar no bem recebido pela Administração. Significa dizer que a garantia do produto, ofertada pelo fabricante, deverá ser cumprida pelo fornecedor, mesmo na ausência do termo de contrato, e não deve ser incluída na sua vigência, pois possui prazo próprio e desvinculado, não podendo, por fim, ser classificada como uma obrigação futura.

​[1] A fim de complemento, é interessante transcrever a definição dos tipos de garantia apresentadas pelo PROCON: “A garantia legal independe de termo escrito, pois já está prevista em lei, sendo imperativa, obrigatória, total, incondicional e inegociável. O início da contagem do prazo para reivindicação começa no mesmo dia da aquisição do produto ou do serviço pelo consumidor. Já a garantia contratual é dada por escrito pelo próprio fornecedor, é o denominado termo de garantia, e deve ser entregue ao consumidor no momento da compra. A garantia contratual é complementar à garantia legal e não é obrigatória. O fornecedor pode concedê-la ou não.Assim se um eletrodoméstico tem a garantia legal de três meses e o fabricante concede termo de garantia de um ano, a garantia do produto perfaz um total de um ano e três meses. Quando um produto possui vício aparente (aquele de fácil constatação), como por exemplo, um produto farmacêutico ou alimentar visivelmente deteriorado, alterado, adulterado ou com prazo de validade vencido, ou até mesmo o eletrodoméstico com defeitos visíveis, a garantia legal para os bens duráveis é de noventa dias, enquanto que para os bens não duráveis é de 30 (trinta) dias, contados do recebimento da mercadoria ou do término da execução do serviço.
Entretanto, quando se tratar de vício oculto (aquele que não se consegue identificar prontamente, muitas vezes requer certo tempo para se manifestar), o prazo para reclamação inicia a contagem a partir do momento em que ficar evidenciado o defeito, uma vez que não se pode eternizar a responsabilidade do fornecedor por vícios ocultos dos produtos ou serviços.

Garantia estendida

Tem sido cada vez mais comum, no momento de aquisição de bens duráveis como automóveis, eletrodomésticos, e eletroeletrônicos, o oferecimento do que se tem denominado garantia estendida. Pagando-se determinado valor, o estabelecimento comercial estende a garantia de fábrica, normalmente de um ano, para dois ou três anos. O Código de Defesa do Consumidor, independentemente da concessão de garantia contratual, obriga os fornecedores (tanto o fabricante como o comerciante) a, em caso de vício aparente ou oculto, realizarem o reparo do bem, promoverem a substituição do produto por outro (em perfeitas condições de uso) ou o abatimento proporcional do preço, em razão de eventual diminuição do valor da coisa decorrente do defeito, além de indenização por perdas e danos.A maioria das reclamações dos consumidores refere-se a vício oculto, ou seja, aquele que se manifesta apenas após determinado tempo de utilização do bem.

O prazo de 90 (noventa) dias para reclamar só se inicia após o surgimento do vício (defeito).Ora, justamente em razão do critério da vida útil, a garantia legal, ou seja, aquela que decorre diretamente do CDC, pode chegar a dois ou três anos após a data de aquisição do bem, sem necessidade de pagamento de qualquer valor adicional.Dependendo do prazo e do valor da denominada garantia estendida, não se vê qualquer vantagem em adquiri-la. Se a contagem do prazo para reclamar de vícios do produto for realizada corretamente, o CDC já oferece proteção adequada e suficiente aos interesses do consumidor.” (Disponível em: < http://www.procon.rj.gov.br/index.php/publicacao/detalhar/399>. Acesso em: 27/03/2018).

​[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014 . p. 991-992.

​[3] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 114.

​[4] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Conceito de “obrigações futuras” para ser exigível o contrato. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/49832/conceito-de-obrigacoes-futuras-para-ser-exigivel-o-contrato>. Acesso em :27/03/2018.

​[5] TCU. Decisão nº 202/2002 - Primeira Câmara. Relator: Ministro Walton Alencar Rodrigues. Data: 14/05/2002.

​[6] AGU. Orientação Normativa nº 51/2014. Disponível em: < http://www.agu.gov.br/atos/detalhe/1256062>. Acesso em: 27/03/2018.