Critérios para contratação direta decorrente de licitação deserta
Quantas vezes a licitação deve ser repetida?
12 de abril de 2018
 
*Por Jacinta Macedo Birkner Guimarães

A dispensa de licitação, com fulcro no art. 24, inc. V, da Lei nº 8.666/93, que possibilita à Administração contratar diretamente, “quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas”, caracteriza-se na hipótese da chamada licitação deserta.

Licitação deserta – diversamente da licitação fracassada, “em que aparecem interessados, mas nenhum é selecionado, em decorrência da inabilitação ou da desclassificação. Neste caso, a dispensa de licitação não é possível”[1] [2]– conforma-se no total desinteresse dos particulares em uma licitação, que findou sem a presença de nenhum fornecedor.

Conceituados os termos necessários, para efetivar-se uma contratação direta sob a égide do supracitado comando normativo, cumpre primeiramente apontar que é assente na jurisprudência e na doutrina correlata, que essa possibilidade de contratação direta deve atender aos seguintes pressupostos autorizadores: “a) licitação anteriormente realizada; b) ausência de interessados; c) risco de prejuízos para Administração, se o processo licitatório vier a ser repetido; e d) manutenção das condições ofertadas no ato convocatório anterior”.[3]

Sendo assim, todos os requisitos devem ser observados em sua completude. Para melhor compreensão, verificar-se-ão as premissas divididas em dois blocos: quanto à necessidade de licitação anteriormente realizada, ausência de interessados e manutenção das condições ofertadas no ato convocatório anterior; e quanto à comprovação do risco de prejuízos para Administração, se o processo licitatório vier a ser repetido.

No entanto, a fim de provocar uma reflexão diferenciada, em razão dos riscos trazidos pela contratação direta operada nos exatos moldes do inc. V, art. 24, ou seja, sem haver uma repetição do prélio original, considere-se o cenário em que a Administração procede à repetição, e ainda assim, remanesce sem a presença de interessados. Com esta perspectiva, pergunta-se: quantas vezes a licitação precisa ser repetida, para assegurar que, de fato, não há interessados, e a contratação direta possa ser empreendida?
 
1) Licitação anteriormente realizada, ausência de interessados e manutenção das condições ofertadas no ato convocatório anterior
Preliminarmente, para caracterizar-se a hipótese de licitação deserta, deve ter sido realizada previamente uma licitação, em que houve a ausência de interessados, devidamente comprovada.

Ora, bastaria o agente público apensar no processo de contratação direta, por exemplo, a Ata da sessão do procedimento licitatório anterior e a publicação do resultado, em que se declara o certame deserto. Neste ensejo, seguindo o que a norma autoriza, não havendo possibilidade de repetição das licitação, sem prejuízo à Administração, e mantidas as mesmas condições do edital, já estaria permitida a contratação direta.

Porém, em um primeiro momento, a Administração, antes de promover uma repetição pura e simples, deve verificar, prudentemente, a eventual existência de condições restritivas ou vícios que tenham cerceado a participação de interessados. Caso sejam identificados quaisquer parâmetros ou critérios limitantes, causadores da ausência de interessados, consequentemente, a contratação direta já não poderá ocorrer. A Administração deverá corrigir o edital e republicá-lo, isento dos vícios detectados.

Contudo, se evidenciado, por meio de uma análise profunda e detalhada, que não há qualquer condição restritiva que porventura tenha causado o desinteresse de particulares na licitação original, aconselha-se que a Administração efetive a repetição, nos exatos termos e condições do processo licitatório inicial. Havendo mais uma vez a ausência de interessados, restando, ao final, atendido o primeiro critério analisado.

Ademais, relembre-se que ao efetivar a contratação direta, devem-se manter as mesmas condições ofertadas no ato convocatório anterior. Assim, o fornecedor deve atender a todas as exigências impostas no edital, mormente à habilitação jurídica, à regularidade fiscal e trabalhista, e à qualificação econômico-financeira e técnica.
 
2) Risco de prejuízos para Administração, se o processo licitatório vier a ser repetido
O segundo requisito, estampado de forma expressa no art. 24, inc. V, da Lei nº 8.666/93, consubstancia-se no dever da Administração, em querendo contratar diretamente, justificar a não repetição do certame declarado deserto, em razão dos prejuízos advindos da realização de uma nova licitação. Nesta senda, Marçal JUSTEN FILHO instrui que:
 
O problema não é realizar a licitação, mas repetir uma licitação que já foi processada regularmente, sem que despertasse interesse aos particulares. Há uma presunção de inutilidade de repetir licitação: se ninguém acorreu à anterior, por que viria a participar da nova? Haveria desperdício não apenas de tempo, mas também de recursos públicos...
Em suma, a aplicação do inc. V pressupõe a validade e regularidade da licitação anterior[1] (grifou-se).
 
Dessume-se das palavras do doutrinador, que repetir uma licitação infrutífera já caracteriza, desde logo, o prejuízo causado à Administração, pelo tempo necessário para o cumprimento dos prazos, assim como dos custos inerentes aos processos licitatórios, como, por exemplo, outra publicação, gastos com material, pessoal etc. Seguindo o mesmo raciocínio, outros renomados autores traçam a obviedade dos danos derivados da repetição dos certames. Veja-se:
 
...licitação deserta, ou “fracassada”, cuja repetição seja prejudicial à Administração. Não precisaria este inciso declinar “prejuízo para a Administração”, pois é evidente que qualquer repetição de licitação é prejudicial, em vários sentidos, à entidade que licita; toda repetição prejudica (em preços, prazos, condições)[2] (grifou-se).
 
Antes de mais nada, convém observar que a repetição da licitação dificilmente deixa de causar prejuízo à Administração, já que acarreta demora na contratação e alteração de preço de bens e serviços[3] (grifou-se).
 
Atente-se que, como já descrito, se a repetição do certame não for possível, em virtude dos prejuízos a serem causados, a Administração deve justificar tal inviabilidade para que a contratação direta não seja considerada ilegal. Não é outra a orientação do Tribunal de Contas da União (TCU):
 
A licitação deserta deve ser repetida ou justificada a inviabilidade de sua repetição (TCU. Acórdão nº 6440/2011 - Primeira Câmara).
 
O art. 24, inciso V, da Lei 8.666/1993 (licitação deserta) só pode ser utilizado como fundamento para a contratação direta caso o certame não possa, justificadamente, ser repetido sem prejuízo para a Administração (TCU. Acórdão nº 342/2011 - Primeira Câmara).
 
A contratação direta por licitação deserta deve demonstrar que a repetição do certame poderá resultar em prejuízo à Administração, em exposição de motivos constante no processo de contratação. (Acórdão nº 7049/2010 - Segunda Câmara).
 
Ausentes os requisitos que caracterizam a licitação deserta e não demonstrado que a repetição do certame traria prejuízos à Administração, é considerada ilegal a contratação direta (TCU. Acórdão nº  2648/2007 - Plenário).
 
Ocorre que, na situação hipotética suscitada neste estudo, a licitação teria sido repetida, isenta de vícios e mantidas as mesmas condições do edital, reproduzindo-se o mesmo insucesso. Dito de outra forma, atuando com a cautela devida, a fim de identificar possíveis exigências que poderiam ter causado o desinteresse das empresas, teria havido revisão do processo licitatório, mantendo-se seus exatos termos e repetindo-se o certame. Entrementes, deu-se novamente o desinteresse dos particulares em participar da licitação, motivo pelo qual, por si só, autorizaria a contratação direta por meio da dispensa de licitação, lastreada no art. 24, inc. V, da Lei nº 8.666/93, pois, obrigar a Administração a repetir a licitação indefinidamente é uma interpretação que, além de não encontrar supedâneo normativo, não reflete a real intenção do legislador. Observe-se o ensinamento de Joel de Menezes NIEBUHR sobre este aspecto:
 
... o dispositivo em comento só justifica a contratação direta se a realização de nova licitação pública impuser prejuízo para a Administração... Sob essa luz, é necessário que a repetição da licitação inviabilize ou provoque gravame a algum bem jurídico visado pela Administração (...)
Pois bem, os prejuízos a que faz referência o inciso V do artigo 24 da Lei nº 8.666/93 não são tão rígidos quanto os do inciso IV. Por exemplo: a Administração precisa comprar um novo equipamento para realizar exames médicos, até então realizados por equipamento mais antigo, não tão eficiente. Essa compra, em princípio, não se enquadra na hipótese de dispensa prevista no inciso IV, pelo que é obrigatório realizar a licitação, nada obstante se tenha o interesse em receber o novo equipamento quanto antes, para melhor atender a população. Procede-se à licitação, mas ninguém se interessa em participar dela. Se a licitação fosse realizada novamente, a população ficaria por mais um bom tempo sem o equipamento, em decorrência do que se vislumbra prejuízo bastante para justificar a dispensa prevista no inciso V, não a do inciso IV.
Outra hipótese — esta aventada por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes — diz respeito a contratos que podem deixar de ser firmados em razão da iminência da devolução dos recursos não aplicados por término do exercício financeiro.93 Por exemplo, o Município recebe recursos financeiros para determinada obra por intermédio de convênio firmado com o Estado já no início do mês de dezembro. Imediatamente dá início à licitação, que resta fracassada. Se repeti-la, encerrar-se-á o exercício financeiro e terá que devolver os recursos ao Estado. Aí o prejuízo é manifesto.
Também ocorre prejuízo nas hipóteses de contratos conexos. Isto é, para prestar dado serviço à população, é necessário celebrar vários contratos conjuntamente. Por exemplo: quer-se implantar sistema integrado de transporte, por efeito do que são necessárias várias obras de melhoria na rede viária, em diversos pontos da cidade. Se licitação referente a uma dessas obras acaba fracassada, a realização de nova licitação impediria que todas as demais fossem postas em operação, o que traduz o prejuízo a que remete o inciso em comento.
Às vezes, o prejuízo é presumido em razão das condições de mercado, especialmente de lugares ermos ou de municípios distantes de centros urbanos, cuja atividade econômica é quase exclusivamente primária, sem que haja disposição de serviços e outras utilidades. Nesses lugares, é frequente a ocorrência de licitações fracassadas e, já se sabe, de antemão, que, se acaso repetidas, novamente serão fracassadas. Portanto, não há sentido em se repetir, sucessivas vezes, licitação que já se sabe fracassada, porquanto o prejuízo é manifesto.
Se a Administração opta por repetir a licitação e se, mesmo assim, o novo certame fracassa, já não resta dúvida de que se deve proceder à dispensa, haja vista que foge da razoabilidade obrigá-la a realizar infinitas licitações diante da situação reveladora de limitações do próprio mercado. A repetição da licitação, por mais de uma vez, desnuda o prejuízo previsto no inciso em apreço[4] (grifou-se).
 
Destarte, é possível inferir que forçar a Administração a repetir sem limites a licitação, até que apareça algum interessado, não traduz qualquer razoabilidade. Se tal cenário fosse assim aplicado, imensos prejuízos seriam causados ao interesse público, pois as demandas seriam postergadas inúmeras vezes, à espera de potenciais licitantes, o que contraria, sobremaneira, os princípios da economicidade e da eficiência, dentre outros preceitos do Direito Administrativo e das licitações públicas.

E frise-se: demonstrada a observância de todos os requisitos aqui elencados, que autorizam a contratação direta por meio do art. 24, inc. V, da Lei 8.666/93, cabe ainda, à Administração, explicitar as razões que fundamentam a escolha do fornecedor e o valor apresentado (compatível com o preço de mercado), em cumprimento ao art. 26, incs. II e III do parágrafo único, da Lei nº 8.666/93. Recomenda-se, por oportuno, que a contratação direta ocorra em no máximo 60 (sessenta) dias da licitação deserta, senão, demonstra-se que haveria tempo hábil para tentar fazer uma nova licitação, consoante entendimento do TCU, exarado no Acórdão nº 2.054/2006 – Plenário.
 


[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 400.
[2] Ressalte-se que esse tema não é pacífico, pois há entendimento na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade de aplicação do art. 24, inc. V, da Lei nº 8.666/93 nos casos de licitação fracassada. Nesta esteira, Jorge Ulisses JACOBY FERNANDES, Joel de Menezes NIEBUHR, Hely Lopes MEIRELES, assim como o Tribunal de Contas da União (TCU) em sua Decisão nº 533/2001 – Plenário: “entendo legítimo concluir que em tese seria possível a invocação do inciso V do art. 24 da Lei 8.666/93 para respaldar a contratação direta também nas hipóteses de licitação fracassada. Todavia, como passo a demonstrar, não poderá jamais essa possibilidade alcançar a hipótese de se contratar por dispensa de licitação as mesmas empresas que foram anteriormente desqualificadas do certame competitivo por não se revestirem de condições para firmar contrato com o Poder Público”. Entretanto, em Acórdão mais recente, da relatora Ministra Ana Arraes, “7.13. De plano, é preciso esclarecer que há diferença entre licitação deserta e licitação fracassada. No primeiro caso, não acorrem interessados ao certame, justificando a contratação por dispensa de licitação nos termos do art. 24, inciso V, da Lei de Licitações. Na segunda hipótese, apesar de acorrem interessados, estes são inabilitados ou desclassificados. A ocorrência de licitação fracassada não torna possível a dispensa de licitação” (TCU. Acórdão nº 2742/2016 - Segunda Câmara) (grifou-se).
[3] TCU. Licitações & Contratos. Orientações e Jurisprudência do TCU. 4. ed. Brasília: TCU, Secretaria Geral da Presidência: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2010. p. 600.
 [4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 417-418.
[5] RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio Bottino. Manual Prático das Licitações. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 323.
[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 260.
[7] NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 277.