Alcance do princípio da publicidade
  
  
É possível conceder vista aos orçamentos que compõem o valor estimado?
  
08 de fevereiro de 2018
 
Por Jacinta Macedo Birkner Guimarães


Objetivando a composição do orçamento estimado nas licitações, a Administração deve buscar junto aos particulares, os valores que estão sendo praticados no mercado. Nesta conjuntura, a dúvida a ser combatida será quanto à possibilidade de franquear vista à cotação utilizada para a composição do orçamento estimado. Para melhor compreensão do assunto, é fundamental compreender, preliminarmente, o denominado princípio da publicidade.

O princípio da publicidade “consagra-se” no “dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos”. Esta é acepção delineada pelo célebre administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, analisada sob o prisma do regime jurídico-administrativo brasileiro. Veja-se: 
  
 












  
A premissa irradiada na Carta Maior, no mencionado parágrafo único do art. 1º, de que todo o poder emana do povo, não poderia ter melhor tradução. Em outras palavras, não há substrato que ampare o encobrimento de informações públicas, salvo as exceções que repousam na proteção do Estado e da sociedade, haja vista o princípio da publicidade não ser absoluto. Haveria, portanto, nestes casos, a mitigação do princípio da publicidade em face da segurança nacional.

É assim que, secundando o dispositivo constitucional, a Lei nº 12.527/11, chamada Lei de Acesso à Informação, elencou nos arts. 23 e 24, as hipóteses em que podem ser restritas as informações e o grau de sigilo assegurado a cada classificação, conformadas nos seguintes moldes:

























  






A transcrição completa dos aludidos preceitos não é despropositada. Ocultar informações que não estejam classificadas consoante o ordenamento, constitui-se em flagrante ilegalidade e afronta diretamente o princípio da publicidade. Neste diapasão, oportuno relembrar a emblemática lição de Bandeira de Mello:


  





  
Observe-se ainda, que a informação, mesmo sendo categorizada como reservada, secreta ou ultrassecreta, não pode subsistir como tal, ad infinitum, ou seja, sem fim, sem termo final, pois há um prazo limite a ser observado. Findo este período, a informação perde seu status sigiloso, sendo possível seu acesso por qualquer cidadão.

Após traçado este panorama e transpondo estas considerações preambulares para a seara das compras públicas, na visão do ilustre doutrinador Marçal Justen Filho, a publicidade “representa uma garantia de lisura e de atendimento aos princípios norteadores da licitação”.[3] E afirma mais adiante: "O princípio da publicidade impõe a divulgação e a possibilidade  de pleno conhecimento por todos os interessados acerca da existência da licitação, da existência e do conteúdo do instrumento convocatório, das decisões da comissão de licitação etc".[4] Convém registrar que o desrespeito a este princípio medular pode acarretar a nulidade do procedimento licitatório e sua eventual repetição.[5]

Além de prevista no art. 3º, caput, da Lei nº 8.666/93,[6] o §3º do mesmo artigo contém determinação categórica quanto à publicidade: “A licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura” (grifou-se).

Chega-se, neste momento, ao atendimento da indagação proposta no subtítulo deste estudo, que se retoma, adicionando-se outro aspecto: é possível conceder vista aos orçamentos que compõem o valor estimado? E há limites para essa concessão? Para ambas as inquirições a resposta é positiva. A assertiva extrai-se da leitura do §3º, acima indigitado, de que todos os atos do procedimento licitatório são públicos e que o limite para a concessão de vista ao processo licitatório é somente quanto à abertura das propostas apresentadas pelos licitantes, para participação do certame. Justen Filho assevera que “excluídas as propostas (até sua abertura), os atos da licitação serão públicos”.[7] Trata-se do princípio do sigilo das propostas, que se consubstancia na garantia de que os envelopes que contém as propostas dos licitantes não serão abertos, muito menos terão seus conteúdos divulgados, antes da sessão agendada para abertura dos mesmos.

Por esta razão, é imperioso enfatizar: é assegurado o pedido de vista ao processo licitatório a qualquer cidadão (seja ele interessado ou licitante), em qualquer momento, a qualquer processo licitatório,[8] de qualquer fase da licitação, seja este requerimento alusivo à fase interna ou externa, excetuando-se a hipótese em que a solicitação ofenda o sigilo das propostas. Ou seja, se, e somente se, a pretensão do demandante for relacionada às propostas de preços, antes da abertura dos envelopes, o pedido de vista pode ser negado.

A título ilustrativo, tome-se como exemplo um pedido de vista em relação ao orçamento estimado, notadamente, aos preços que o compuseram, após publicado o edital; isto é, antes da sessão de abertura das propostas. Ainda que cause estranheza e pareça inadequado aquiescer com a solicitação, obedecendo-se aos princípios e normas aqui apontados neste breve ensaio, não há motivos que justifiquem o não acatamento do pedido.

Isso porque não se deve confundir as propostas ofertadas para a licitação, com os orçamentos enviados pelos particulares, a pedido da Administração, utilizados para compor o custo estimado (ou máximo) da licitação. Não se pode restringir, por exemplo, o pedido de vista ao orçamento somente após abertura das propostas da licitação. Os preços que compõem o orçamento estimado não assujeitam os particulares (podendo, inclusive, caso venham a participar do certame, ofertarem proposta diferente),[9] e têm o condão de refletir a realidade do mercado; o que dará subsídio e embasamento à Administração para a abertura do processo licitatório.

Como já bem repisado, às propostas de preços, ofertadas pelos licitantes que efetivamente estão participando do certame, suprime-se o princípio da publicidade e evoca-se o sigilo das propostas, até o momento da sua abertura na sessão, o que não se deve aplicar aos orçamentos que compõem o custo estimado. Conclui-se, afinal, que é compulsória a aplicação do princípio da publicidade a todo o procedimento licitatório.


[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 114.
[2] Ibidem. p. 967.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 112.
[4] Ibidem. p. 113.
[5] Diz-se eventual repetição em virtude da análise que deverá ser realizada pela Administração, quanto aos efeitos advindos da violação ao princípio da publicidade, a depender de cada caso concreto. Pode a licitação ser aproveitada na sua integralidade, se por exemplo, não houve a divulgação a todos os interessados sobre o resultado do julgamento. No entanto, caso haja a abertura dos envelopes com as propostas de preços antes da data aprazada, todo o procedimento restará maculado (Idem).
[6] A Lei nº 8.666/93 apresenta em outros dispositivos o atendimento ao princípio da publicidade, a exemplo do arts. 4º, 16, 21, 43 (§1º), 45 (§2º), 63, 109, entre outros.
[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit. p. 113
[8] Vale destacar que pode haver situação distinta, em determinado processo licitatório, que exija o sigilo de informações para além das propostas. Todavia, esta excepcionalidade deve estar devidamente justificada e enquadrada nos já citados normativos da Lei de Acesso à Informação.
Ademais, afora as licitações processadas por meio da Lei nº 8.666/93, cumpre frisar que o Regime Diferenciado de Contratação (RDC) estatuído pela Lei nº 12.462/11, trouxe a possibilidade do agente público optar  pelo sigilo do orçamento estimado, presente no art. 6º, caput e §3º: " Art. 6º. Observado o disposto no §3º, o orçamento previamente estimado para a contratação será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas. (...) §3º Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estrita e permanentemente aos órgãos de controle externo e interno".
E ainda nesta senda, a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) reproduziu a mesma inteligência em seu art. 34: "Art. 34. O valor estimado do contrato a ser celebrado pela empresa pública ou pela sociedade de economia mista será sigiloso, facultando-se à contratante, mediante justificação na fase de preparação prevista no inciso I do art. 51 desta Lei, conferir publicidade ao valor estimado do objeto da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas. §3º A informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação, ainda que tenha caráter sigiloso, será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado".
[9] Neste toar, veja-se o Acórdão nº 2.149/2014 – Primeira Câmara, do Tribunal de Contas da União (TCU): “Os preços obtidos pela Administração na fase interna da licitação, em coletas destinadas apenas a formar o preço de referência dos serviços a serem licitados, precisam ser vistos com reserva, porque o mercado fornecedor está ciente de que os valores informados naquela ocasião não vinculam as propostas que eventualmente venham a apresentar no certame licitatório. Nesse cenário, os fornecedores de bens e serviços não desejam revelar aos seus concorrentes os preços que estão dispostos a praticar, no futuro certame licitatório. Por isso, os preços são artificialmente subestimados ou superestimados. Esses preços não se mostram hábeis, pois, a compor o referencial utilizado na quantificação de aparente superfaturamento de preços. A comparação, para esse fim, haveria de considerar os preços efetivamente praticados pelo mercado fornecedor em situação semelhante” (grifou-se).
  


  

Consagra-se nisto o dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.
Tal princípio está previsto expressamente no art. 37, caput, da Lei Magna, ademais de contemplado em manifestações específicas do direito à informação sobre os assuntos públicos, quer pelo cidadão, pelo só fato de sê-lo, quer por alguém que seja pessoalmente interessado. É o que se lê no art. 5º, XXXIII (direito à informação)...
Na esfera administrativa o sigilo só se admite, a teor do art. 5º, XXXIII, precitado, quando "imprescindível à segurança da Sociedade e do Estado".[1]


  
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Art. 23.  São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:
I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;
III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;
V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou
VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Art. 24.  A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada.
§1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caput, vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;
II - secreta: 15 (quinze) anos; e
III - reservada: 5 (cinco) anos.
§2º As informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
§3º Alternativamente aos prazos previstos no §1º, poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de determinado evento, desde que este ocorra antes do transcurso do prazo máximo de classificação.
§4º Transcorrido o prazo de classificação ou consumado o evento que defina o seu termo final, a informação tornar-se-á, automaticamente, de acesso público.
§5º Para a classificação da informação em determinado grau de sigilo, deverá ser observado o interesse público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível, considerados:
I - a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado; e
II - o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final.
  
  
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.[2]